domingo, 9 de março de 2014

VENCE AQUELE QUE NAO TEME O PERIGO


O texto de hoje foi retirado do blog TSUROGUI NO MICHI - O ESPÍRITO MARCIAL. O blog trata principalmente da esgrima e da cultura japonesa. Reproduzimos o texto integral e adicional as ilustrações como divulgação. Boa leitura!


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…..Os contos e lendas sobre os feitos dos samurai  fascinam leitores e, em sua maioria, possuem significados e conselhos quase subliminares que podem melhorar a postura do estudante de artes marciais de diversas modalidades. Dentre tantas fontes, é interessante notar que em uma obra do senhor Masaharu Taniguchi, patriarca do Seicho-no-Ie, chamada O Livro dos Jovens possui um capítulo embasado na influência do destemor na vida como ferramenta de motivação e auto-ajuda. Extraído do capítulo 9 – Vence aquele que não teme os perigos – este conto apresenta algumas características da mentalidade do combate, do estado mental e suas influências e consequências de forma bastante clara e didática. Segue o texto na íntegra:
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…..“Era uma vez um samurai errante. Em suas longas andanças pelo país, havia-lhe acabado o dinheiro e estava tendo dificuldade até para garantir o alimento de cada dia. Naquela época, havia um costume 
segundo qual todo samurai que visitasse uma academia de kendô e medisse suas forças com o mestre dessa academia ou com um dos discípulos, era convidado para uma refeição, quer vecesse a luta ou não. Lembrando-se disso, o samurai errante achou que seria uma ótima ideia aproveitar-se desse costume para garantir a sua subsistência. Resolveu que dali em diante passaria a visitar justamente na hora da refeição, todas as academias que encontrasse durante a viagem, deixar-se-ia vencer propositadamente para terminar logo a luta, e receberia um prato de comida. E assim, chegando certa tarde em frente a uma das maiores academias de Edo (antiga capital do Japão), gritou:
- Ó de casa!
…..Assim que um dos discípulos veio atender, o samurai disse numa voz alta e clara:
- Sou um samurai em peregrinação pelo país para aperfeiçoar as habilidades do manejo com a espada. Gostaria de lutar com o dono desta academia.
…..O homem que atendeu ficou impressionado com o ar destemido do samurai e foi correndo anunciar ao mestre:
- Mestre! Mestre! Está lá fora um samurai muito forte, e diz que deseja lutar com o senhor!
…..O mestre, que estava jantando, respondeu:
- Conduza-o para a sala de treinos e peça-lhe para esperar um pouco.
…..Assim o samurai ficou aguardando na sala de treinos. Logo apareceu o mestre dessa academia, um homem alto e forte. Os dois se cumprimentaram e imediatamente levantaram-se para lutar. Mas o samurai não tomou nenhuma posição de defesa ou de ataque, já que estava com fome e queria ser derrotado o quanto antes, para acabar com essa luta e poder comer. Por isso, ficou simplesmente parado, sem ao menos levantar a espada de madeira que segurava na mão direita.
…..O mestre ficou surpreso ao ver que o samurai estava totalmente aberto para o ataque adversário. Até parecia alguém que desconhecesse completamente a arte de esgrimir. Mas seria impossível que um homem totalmente inexperiente desafiasse esgrimistas experientes, assim, sem mais nem menos. ‘Talvez ele esteja simulando, só para me atrair’, pensou o mestre. E disse:
- Defenda-se, cavalheiro.
…..Ao que o outro respondeu, com a maior calma:
- Estou bem assim.
…..Vendo-o tão imperturbável, o mestre começou a inquietar, pensando:
…..‘Esse samurai deve ser um exímio espadachim. Caso contrário, não seria capaz de ficar assim parado e calmo, totalmente aberto ao ataque de um adversário experiente como eu. Ele mantém abaixada sua espada, como se não tivesse a mínima intenção de me atacar; mas, com certeza, no momento em que eu fizer o mais leve movimento com a minha espada, ele aproveitará essa pequena brecha e desferirá um golpe, com a rapidez de um relâmpago. Por isso, não devo mover-me. Perderei a luta se cometer o erro de esboçar o mínimo movimento antes dele.’
…..Assim pensou o mestre da academia; e, quanto mais desejava atacar, mais tolhido se sentia, temendo criar para o adversário um oportunidade de contra-ataque. Em suma, a sua mente estava perturbada devido ao medo de ser golpeado. Quanto ao samurai, estava inteiramente calmo, pois ao invés de temer o ataque do adversário, pensava em ser golpeado sem muita demora, para poder logo comer. O mestre mantinha-se imóvel, observando atentamente o adversário, mas sua mente estava agitada, pois havia se convencido de que o samurai era muito forte e revidaria qualquer tentativa de ataque. Dir-se-ia que, mentalmente, o mestre estava travando uma tremenda luta com esse ‘terrível adversário’, que ele próprio criara em sua imaginação. Por isso, apesar de manter-se imóvel, a sua mente estava dominada pelo medo. Ao cabo de alguns minutos, o seu coração começou a bater mais rapidamente, a sua respiração tornou-se ofegante, e o suor começou a escorre-lhe pela testa. Finalmente, ele atirou ao chão sua espada de madeira, curvou-se diante do adversário, e disse respeitosamente:
- Ao longo de minha carreira, já lutei com muitos cultores de artes marciais, mas até hoje não havia encontrado um homem tão destemido e seguro de si como o senhor. Gostaria de saber como se chama o seu estilo de esgrima, e em que escola e senhor o aprendeu.
…..O samurai errante, acanhado, respondeu:
- O senhor está enganado. Eu não sou forte como o senhor está pensando. Não passo de um samurai medíocre e quanto ao meu estilo de esgrima, talvez possa ser chamado de ‘Estilo da vontade de comer’. Vou-lhe explicar. Peregrinando pelo país, caí na miséria e não sabia o que fazer para garantir o meu sustento. Até que, finalmente, tive a ideia de visitar cada academia que eu encontrasse no caminho e desafiar o dono ou os discípulos para uma luta, pois lembrei-me de que é costume das academias oferecerem uma refeição a tais visitantes. O que eu quero não é vencer a luta, mas sim obter comida. Por isso, qualquer que seja o adversário que aceitar o meu desafio, eu não fico atemorizado. Não penso em mais nada além de deixar-me vencer o quanto antes e receber um prato de comida e por essa razão a minha mente se mantém calma e imperturbável, mesmo diante dos mais fortes adversários. Parece que, devido a essa minha atitude, o senhor pensou que eu fosse um exímio espadachim, e esse temor deixou-o sem ação. Agora que sabe a verdade, derrote-me logo e me dê, por favor, um prato de comida.
…..Ouvindo essa explicação, o mestre reflexionou e compreendeu que, sentindo receio, não é possível o correto discernimento das coisas, o que torna agitada a mente e provoca a derrota, ao passo que a ausência de medo ou receio mantém a calma a mente e torna possível a vitória.”

Mushin
Mushin: O não espírito, a não mente

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